O Caso da Samourai Wallet e o Futuro da Auto-Custodia

O Caso da Samourai Wallet e o Futuro da Auto-Custodia

15/12/25Por Tomás MamedeTempo de leitura: 15 minutos

Um pouco por todo o mundo, o foco por parte dos reguladores tem estado na aplicação aos criptoativos das mesmas leis de combate ao branqueamento de capitais e ao terrorismo. Em alguns casos, esses esforços ameaçam o estatuto legal de ferramentas de software que permitem a auto-custódia de criptoativos, e a indivíduos transacionar e custodiar os seus ativos digitais sem ser necessário o envolvimento de intermediários.

De facto, as acusações criminais recentes contra programadores que desenvolvem carteiras de Bitcoin com foco em privacidade, trouxeram à luz do dia uma teoria legal controversa. Estes programadores de carteiras de auto-custódia podem ser considerados entidades de transferência de dinheiro e processados e acusados como se estivessem a atuar como instituições financeiras.


A Transmissão de Dinheiro e Modelos de Custódia

Na maioria das jurisdições, o enquadramento legal de combate ao crime financeiro distingue serviços bancários, que aceitam e transmitem fundos em nome de terceiros, e programadores, que criam ferramentas que qualquer pessoa pode utilizar para gerir os seus próprios ativos.

De acordo com essas regras e leis, entidades de transferência de dinheiro são pessoas ou entidades que controlam os ativos do cliente e os transferem para outro. Para atuarem no mercado devem registar-se com as autoridades competentes, implementar programas de KYC (Know-Your-Customer), monitorizar transações e reportar atividades suspeitas.

Ao longo da última década, reguladores têm emitido pareceres de forma a clarificar como é que essas distinções se aplicam aos criptoativos. Em geral, serviços de custódia (exchanges centralizadas, hosted wallets e processadores de pagamentos) são tratados como transmissores de dinheiro, porque controlam chaves privadas e executam a transferência de fundos. Por outro lado, ferramentas de auto-custódia (software onde os utilizadores guardam as suas chaves e transacionam diretamente sem intermediários) têm, historicamente, sido tratados como se operassem fora deste enquadramento, dado que não existem intermediários a aceitar ou transmitir fundos.

Esta linha entre custodial e auto-custodial tem sido a base a partir da qual reguladores distinguem intermediários financeiros de programadores de software open-source.


Apps Tradicionais de Pagamento e Auto-custódia

Para melhor entender esta distinção pode ajudar comparar os dois modelos. Serviços que operam como intermediários detêm os fundos dos clientes em pools ou contas segregadas, atualizam registos internos quando um utilizador paga a outro e movem fundos entre contas bancárias. Como estas plataformas aceitam fundos de um utilizador e os transferem para outros caem na definição clássica de entidades transmissoras de dinheiro.

Em contraste, carteiras de Bitcoin em auto-custódia funcionam mais como um cofre pessoal. Dado que os utilizadores controlam as suas próprias chaves privadas, o software da wallet é quem cria e assina transações localmente e os fundos são transferidos diretamente de um endereço na blockchain para outro endereço, sem que nenhum intermediário tenha acesso ou custodie Bitcoin em algum momento.

Neste modelo, o transmissor de valor é o utilizador que controla as chaves privadas e não o programador do software. A carteira é, assim, uma ferramenta para construir e emitir transações para a rede, e não uma instituição financeira que gere os fundos do cliente.


Estender Regras de Transmissão de Dinheiro a Ferramentas de Auto-Custódia

Reguladores têm contestado que facilitar transações peer-to-peer pode ser suficiente para desencadear obrigações de entidade de transmissão de dinheiro, mesmo que a ferramenta nunca decida quando é que a transação é executada. Isso iria alargar a definição de transmissão de dinheiro e incluir aqueles que mantêm software que outros usam para gerir os seus fundos.

Críticos defendem que esta interpretação impõe requisitos de conformidade (KYC, monitorização e reportagem) a programadores de ferramentas open-source não custodiais que seriam logisticamente impossíveis de realizar, dado que não há como saber quem são os utilizadores e que transações estão a fazer. Neste contexto de auto-custódia, o verdadeiro transmissor de dinheiro é quem controla as chaves privadas e não o programador que escreveu o código.


A Samourai Wallet é um exemplo de uma wallet de auto-custódia de Bitcoin que se tornou central no debate acerca das regulações financeiras que se aplicam às ferramentas open-source de software. Do ponto de vista técnico, a Samourai Wallet foi desenvolvida para que os utilizadores tivessem a oportunidade de controlar completamente as suas chaves privadas, escolhessem como e quando transacionar e não tivessem que depender de terceiros para guardar ou transmitir os seus fundos.

Quando se utiliza a Samourai Wallet, o valor circula diretamente na rede Bitcoin entre endereços controlados pelos utilizadores. O software da carteira fornece a interface para construir transações entre utilizadores, mas nunca toma posse de bitcoin.

Para além disso, a Samourai Wallet integra ferramentas de privacidade tais como Whirlpool e Ricochet. Whirlpool é um protocolo baseado em CoinJoins que permite que múltiplos utilizadores combinem as suas bitcoins numa única transação e recebam de volta diferentes outputs, o que torna difícil ligar inputs e outputs para vigilância ou análise. Whirlpool está estruturado de forma a que cada participante seja capaz de custodiar as suas próprias bitcoins ao longo do processo, logo não existe uma pool de fundos controlada por nenhum intermediário.

Por outro lado, Ricochet permite aos utilizadores adicionar saltos intermédios no processo de pagamento, inserindo transações intermediárias, que tornam simples heurísticas de tracking muito menos eficazes. Ambas as funcionalidades foram implementadas de forma a preservar a auto-custódia. Deste modo, a Samourai Wallet não é responsável por gerir ou guardar o saldo dos utilizadores nem é capaz de bloquear ou aprovar transações.

De forma a cobrar fees pelo serviço prestado, a Samourai Wallet inclui os seus próprios endereços nas transações dos utilizadores. Este método permite aos programadores da Samourai Wallet receber compensação sem custodiar os fundos dos utilizadores. A fee está presente na estrutura da transação, mas o controlo dos fundos permanece com o utilizador até que a transação seja emitida para a rede e confirmada na blockchain. Os programadores da Samurai Wallet não desempenham qualquer papel na execução ou aprovação das transações.


Ferramentas de Privacidade, Financiamento Ilícito e Direitos Humanos

Tal como noutros domínios, a lei também não acusa os criadores de outras ferramentas pelo mau uso por parte de terceiros. Por exemplo, os programadores de ferramentas de software criptográficas, protocolos de VPN, clientes de email ou redes sociais também não são acusados como se tivessem participado em crimes possibilitados pelo mau uso das tecnologias que criaram.

Desta perspetiva, o colapso da distinção entre desenvolver ferramentas de auto-custódia e operar um serviço de custódia de criptoativos pode introduzir um risco legal para quem quer que construa ferramentas de segurança ou privacidade. Qualquer precedente de que programadores são responsáveis pelo uso nefasto do seu código terá consequências não apenas para carteiras de criptoativos, mas também para criptografia, cibersegurança e software open-source em geral.

O custo para ativistas e populações vulneráveis, que perdem acesso a tecnologia que preserva a privacidade, poderá exceder os benefícios de lutar contra branqueamento de capitais ou terrorismo ao se banir ferramentas de auto-custódia como a Samourai Wallet.

O resultado sente-se também na perda de ferramentas financeiras acessíveis para aqueles que contam com a infraestrutura aberta, voluntária e resistente à censura da Bitcoin. Limitar o acesso a estas ferramentas num país pode indiretamente excluir grupos noutros cantos do mundo.


Implicações para Nodes, Mineradores e Hardware Wallets

Uma outra preocupação com esta forma de olhar para ferramentas, como a Samurai Wallet, é a aplicação da mesma lógica para outros participantes no ecossistema Bitcoin, nomeadamente, fornecedores de hardware wallets que produzem dispositivos para guardar chaves privadas offline; operadores de nodes, que validam, emitem transações e impõem consenso; mineradores, que constroem blocos de transações; e até empresas que fornecem custódia partilhada como a Unchained ou a Casa.

Em particular, operadores de nodes são, muitas vezes, indivíduos que verificam as regras da rede. Ao incluir ferramentas open-source na categoria de transmissores de dinheiro, estas pessoas podem ser vistas como se estivessem a transmitir fundos, apesar de não operarem um negócio ou agirem em prol de outros.

Se correr um node necessitasse de licença ou conformidade legal, muitos participantes seriam excluídos por custos elevados ou complexidade. Isto poderia reduzir o número e a diversidade de nodes, concentrar poder num pequeno conjunto de intermediários, e enfraquecer a estrutura peer-to-peer e resistente à censura da Bitcoin.


Conclusão

O debate não se prende apenas com um caso isolado ou com um único país. Na verdade, levanta questões fundamentais que muitos países terão que resolver, nomeadamente:

  • Como é que se deve distinguir entre um intermediário financeiro e uma ferramenta de software?
  • Como é que se balanceiam os objetivos de combate ao branqueamento de capitais e terrorismo com direitos humanos?
  • Que direitos devem os cidadãos ter em sistemas monetários digitais?
  • Como é que a regulação se mantém tecnologicamente coerente?

A controvérsia à volta de carteiras não-custodiais e ferramentas de privacidade envolve mais do que ações legais ou algumas jurisdições. De facto, toca no centro de como as sociedades tratarão auto-custódia, toca na fronteira entre software e intermediação financeira e o papel que a privacidade deve ter numa era de sistemas de pagamento transparentes e monitorizados.

Em última instância, quer os reguladores tratem ferramentas de auto-custódia como uma infraestrutura neutra ou como instituições financeiras disfarçadas, é certo que isso terá impacto não só no futuro dos ativos digitais, mas também no futuro da criptografia, desenvolvimento de software open-source e nas liberdades civis digitais de forma mais ampla.


William Hill e Keonne Rodriguez são os programadores por detrás da Samourai Wallet, uma carteira Bitcoin open-source, focada em privacidade e que oferece um serviço de mistura de transações. Em 2024, foram detidos e mais tarde declararam-se culpados de conspiração por operar um negócio de transmissão de dinheiro não licenciado ligado a ações criminais. William foi detido em Portugal antes de ser extraditado para os Estados Unidos. Em novembro de 2025, um tribunal federal norte-americano condenou Rodriguez a cinco anos de prisão e Hill a quatro, mais três anos de liberdade vigiada e uma multa de 250.000 dólares para cada um.

A comunidade Bitcoin está solidária com o William e o Keonne e criou um fundo para ajudar a cobrir despesas básicas de subsistência. Pode encontrar mais detalhes aqui.

Foi também criada uma petição que pede um perdão para William e Keonne. Assinar demora 30 segundos e cada assinatura ajuda a mostrar que a comunidade os apoia. Pode encontrar mais detalhes aqui.