Défices Públicos e o Mecanismo de Expansão Monetária

Défices Públicos e o Mecanismo de Expansão Monetária

03/10/25Por Bruno de GouveiaTempo de leitura: 15 minutos
Artigo escrito em colaboração com Tomás Mamede

Os défices públicos, que surgem quando os governos gastam mais dinheiro do que aquele que coleta em impostos, são muitas vezes vistos como meros desequilíbrios fiscais. No entanto, estes défices são a espinha dorsal de um sistema financeiro sofisticado que incentiva à criação de dinheiro a partir do nada.

Este mecanismo envolve uma simbiose entre governos, bancos comerciais e bancos centrais, como o Banco Central Europeu (BCE) e a Reserva Federal Norte-Americana (FED); que transformam défices públicos em combustível para a expansão monetária, muitas vezes à custa da perda de poder de compra por parte daqueles que poupam e guardam essa moeda.

Este artigo, explora o processo de criação de dinheiro e compara o modo de operação entre a zona económica europeia e os Estados Unidos da América, ao mesmo tempo que critica o sistema monetário fiduciário e apresenta a Bitcoin como uma força contrária a este sistema.


O Ciclo de Criação de Dinheiro Impulsionado pelo Défice

Quando um governo europeu mantém défices, tem que procurar financiamento externo, tipicamente através de emissão de títulos de tesouro e obrigações soberanas. Défices maiores amplificam a necessidade de financiamento, exercendo pressão sobre o sistema financeiro para colocar mais dinheiro em circulação. Erros na gestão governamental, quer seja por má e ineficiente alocação de recursos, gastos pouco produtivos ou más políticas, aumentam estes défices. Deste modo, sem ganhos de produtividade reais, ou seja, sem produzir mais valor com os mesmos recursos, os défices continuam a aumentar exponencialmente, o que aumenta a necessidade de aumentar a dívida do Estado ou “imprimir” mais dinheiro.

Os bancos comerciais são os principais compradores destes títulos de tesouro e obrigações do Estado, por duas razões principais. Em primeiro lugar, porque ganham juros com os spreads, ou seja, ganham dinheiro emprestando dinheiro ao Estado. Por outro lado, estes ativos soberanos são considerados extremamente seguros e líquidos, o que permite aos bancos usá-los como colateral perante o BCE. E são seguros porque são suportados pela promessa do Estado de que, em último recurso, mais dinheiro será criado para pagar de volta o empréstimo. Isto permite aos bancos comerciais alavancarem estes títulos de dívida, transformando dívida pública numa ferramenta para gerar liquidez e apoio ao crédito praticamente imediata.

Na prática, os bancos compraram títulos de dívida soberana e imediatamente dão-los como garantia ao BCE como colateral. Em troca, recebem novos euros criados digitalmente. Assim, o BCE empresta euros diretamente contra dívida pública, convertendo o défice em liquidez para o sistema financeiro. Por isso é que dívida não paga impostos - é assim que o dinheiro é criado e introduzido no sistema financeiro.

Os bancos centrais na Zona Euro operam com um rácio de alavancagem entre 10:1 e 30:1. Na prática, isto significa que por cada 1€ de capital próprio os bancos são autorizados a deter entre 10€ e 30€, em grande parte financiados através de dívida e depósitos dos clientes. Antes da crise de 2008, os bancos eram autorizados a operar com recurso a uma alavancagem ainda maior, o que provou ser insustentável.

Para manter esta máquina de criação de dinheiro a funcionar, o BCE é responsável por determinar a política monetária, que inclui estabelecer a principal taxa de refinanciamento, ou seja, a taxa a que os bancos comerciais podem obter liquidez a partir do BCE; a taxa de facilidade de depósito, que remunera o dinheiro parado no BCE e a taxa da facilidade permanente de cedência de liquidez, que funciona como penalização para empréstimos de último recurso. Estas taxas condicionam o custo de criação de dinheiro neste sistema.

A Euribor (Euro Interbank Offered Rate) resulta da média das taxas de juro às quais um conjunto de grandes bancos comerciais europeus está disposto a emprestar dinheiro uns aos outros no mercado interbancário, por diferentes prazos (1 semana, 3 meses, 6 meses, 12 meses). O BCE influencia a Euribor de forma indireta através das suas taxas diretoras (taxa de refinanciamento principal, taxa da facilidade de depósito e taxa da facilidade de cedência de liquidez). Estas taxas determinam o custo do dinheiro no sistema financeiro, condicionando assim as condições em que os bancos comerciais emprestam entre si.

Assim, a Euribor não é uma taxa fixada diretamente pelo BCE mas suas políticas monetárias criam as condições que moldam esse valor. A Euribor é crucial porque serve como referência para milhões de contratos de crédito na Europa — desde empréstimos à habitação até linhas de crédito para empresas. Quando a Euribor sobe, as prestações dos empréstimos aumentam; quando desce, aliviam-se os encargos financeiros de famílias e empresas.

Desta forma, o BCE permite aos bancos multiplicar o crédito que emitem e lucrar com ele através da diferença entre a taxa a que o BCE lhes empresta dinheiro e a taxa a que emprestam dinheiro aos clientes. Este é um sistema fantástico para os governos e para os bancos, mas pouco amigo de quem trabalha e poupa. Os governos obtêm financiamento perpétuo, os bancos lucram e o BCE mantém uma estabilidade a curto prazo no sistema financeiro.

No entanto, esta expansão monetária continua dilui o poder de compra daqueles que poupam e mantêm depósitos bancários em Euros. Para além disso, isto fomenta uma mentalidade gastadora e irresponsável nos governos, que veem o BCE como uma rede de segurança contra o fracasso e que incentiva défices persistentes. Apenas a produtividade real pode contrariar isto; caso contrário, manifesta-se como inflação.


FED vs. BCE: Obrigações do Tesouro e Controlo das Taxas de Juro

Tanto nos EUA como na Europa, os títulos de tesouro são a base do sistema financeiro, e atuam como ativos seguros, benchmark de taxas de juro e ferramentas para decisão da política monetária. Nos EUA, crédito habitação de taxa variável e empréstimos empresariais são indexadas à SOFR (Secured Overnight Financing Rate), que reflete as condições de liquidez para usar títulos de tesouro em operações monetárias. Tem um papel semelhante à EURIBOR na Europa.

Nos EUA, a FED controla as taxas de juro diretamente. Para baixá-las compra títulos de tesouro no mercado secundário, fazendo os preços subir e os juros descer. Para aumentar as taxas de juro, vende títulos de tesouro e suspende o reinvestimento em dívida em maturação, fazendo diminuir os preços e aumentando os juros. Esta dinâmica define o SOFR que, por sua vez, influencia pagamentos de empréstimos a empresas e famílias.

Na Europa, o BCE controla as taxas de juro indiretamente, dado que não é permitido ao banco central comprar dívida soberana no mercado primário. De facto, o BCE opera através de refinanciamento, aceitando dívida soberana denominada em Euros como colateral. Estas operações influenciam as taxas interbancárias das quais a Euribor emerge. Em alturas de crise ou emergência, como na crise de 2012 ou durante a pandemia de COVID-19, são criados programas excepcionais que permitem a compra de dívida no mercado secundário, de forma semelhante à FED.


Financiamento Produtivo

Apesar das críticas aos bancos, o seu modelo de negócio pode ser altamente benéfico para a sociedade quando o crédito emitido é utilizado para financiar infraestruturas ou projetos que criam valor real. De facto, empresas inovadoras investem em novos produtos, serviços e tecnologias, enquanto que projetos de infraestruturas como estradas, pontes e sistemas energéticos e de telecomunicações fortalecem a vida económica dos países. Por outro lado, educação e investigação expandem o capital humano e permitem aumentar a capacidade para crescimento a longo prazo.

Nestes casos, o crédito não serve apenas para financiar a despesa e o défice público, mas sim para gerar crescimento sustentável e riqueza coletiva. Por exemplo, uma nova estrada construída com capital emprestado não é uma mera dívida. Na verdade, encurta distâncias, tem potencial para aumentar o comércio e transformar as comunidades locais.

Deste modo, a distinção é clara: crédito aplicado a projetos produtivos pode gerar valor real e contribuir para o progresso dos países, ao passo que mau crédito resulta num aumento dos défices, inflação e estagnação da sociedade. Quando os bancos alocam o capital de forma sensata conseguem tornar-se numa força para a evolução das sociedades que integram.


Moedas Fortes vs Moedas Fracas: O impacto dos défices

No caso de moedas fortes, como o Euro ou o Dólar, défices criam incentivos estruturais para taxas de juro baixas, dado que os bancos compram dívida e usam essa dívida como colateral perante o BCE ou a FED de forma a gerar liquidez barata sob a forma de novo dinheiro criado digitalmente. Assim, na Europa e nos EUA, o impacto da inflação é mitigado porque estas moedas circulam globalmente, o que dilui por vários países o custo da impressão de dinheiro.

No caso de moedas fiduciárias fracas, com o Peso Argentino ou o Real Brasileiro, o processo funciona ao contrário. Dado que os mercados globais desconfiam da dívida soberana destes países e não a veem como um ativo seguro ou refúgio, os governos pagam elevadas taxas de juro de forma a atrair compradores. E, portanto, de forma a tentar manter o capital no país os governos procuram manter as taxas de juro elevadas.


Dinheiro Fiat: Valor Distorcido e Ilusão de Controlo

No mercado livre, nada tem valor inerente. Todo o valor é subjetivo e depende de quem o atribui. O dinheiro fiduciário impõe um valor objetivo nominal às coisas que, por vezes, não está alinhado com a realidade, o que conduz a perceções distorcidas no mercado. Num sistema monetário estável, valores relativos permanecem consistentes, constantes e refletem verdadeiros sinais económicos a ser captados pelo mercado. No entanto, o dinheiro fiduciário introduz instabilidade através de expansão monetária ilimitada e manipulação artificial das taxas de juro.

Vários críticos argumentam que o controlo dos bancos centrais sob a taxas da Euribor ou SOFR é ilusório. É certo que existem ferramentas para influenciar as taxas de juro, mas a cadeia de decisão é bastante influenciada pelos interesses de grupos específicos. De facto, os acionistas do BCE e dos seus bancos constituintes remontam a entidades privadas que priorizam lucros sob estabilidade económica. E, para além disso, muitas das decisões tomadas nestas instituições centralizadas têm consequências, por vezes, difíceis de prever.

Quando as previsões falham guerras e eventos externos são culpados pelas discrepâncias, e os défices alinham os incentivos para que se baixem as taxas de juro. No meio disto tudo, os governos continuam a ser financiados, os bancos lucram com os spreads e os bancos centrais mantêm a sua posição de poder. Na sua essência, o sistema financeiro fiduciário fomenta o défice que, por sua vez, cria os incentivos para inflacionar a moeda e que, em última instância, penaliza os trabalhadores que poupam nessa moeda.


Bitcoin: Uma alternativa às falhas do sistema fiduciário

A Bitcoin emerge com uma alternativa revolucionária, que remove os incentivos do sistema fiduciário para manipular o dinheiro. Ao contrário da moeda fiduciária, a oferta de bitcoins é fixa, dado que é matematicamente garantido que nunca existirão mais do que 21 milhões de bitcoins. Isto previne a expansão arbitrária da quantidade de dinheiro na economia e volta a alinhar o mundo com os princípios do mercado livre em que o valor é subjetivo. Para além disso, o incentivo monetário para as guerra é mitigado, dado que os governos não podem simplesmente criar mais dinheiro do nada para financiar os seus conflitos e défices.

No mundo fiduciário ideal, os bancos emprestaram o novo dinheiro criado digitalmente para ser aplicado em ativos produtivos apenas, de forma a fazer a economia crescer para absorver a expansão monetária. Mas a realidade está bastante longe deste ideal. Mas, a Bitcoin cria uma economia onde o valor é ditado pelo mercado e onde as distorções são mínimas. Sendo um ativo sem fronteiras e descentralizado, a Bitcoin desafias as abstrações ilusórias dos bancos centrais e pode oferecer verdadeira escassez e estabilidade.


Conclusão

Os défices públicos não são problemas fiscais isolados, mas catalisadores para a expansão monetária através das dinâmicas entre governos e bancos centrais. Apesar da FED e do BCE diferirem ligeiramente na sua forma de atuação, ambos perpetuam ciclos de dívida que favorecem estabilidade no curto prazo à custa de preservação de valor no longo prazo. A distorção de valor, a ilusão de controlo e o favoritismo de certas elites expõe as vulnerabilidades do sistema. No entanto, a Bitcoin representa uma mudança de paradigma que pode ajudar a neutralizar estes incentivos e promover uma realidade monetária mais justa.