
A Bitcoin é uma Timechain
No mundo dos ativos digitais, a Bitcoin destaca-se como uma invenção revolucionária e disruptiva, mas a sua essência é pouco compreendida pela grande maioria das pessoas. Olhar para Bitcoin pela lente temporal torna claro que a blockchain (cadeia de blocos), não é a principal inovação. Na verdade, nem sequer é uma ideia nova, como se torna evidente ao estudar a literatura do passado no domínio de timestamps.
A ideia inovadora, aquilo que Satoshi Nakamoto realmente descobriu, foi como é que vários intervenientes concordam na ordem histórica de eventos e mantêm consenso sem coordenação central por parte de uma autoridade. Esta descoberta despoletou uma mudança de paradigma que permitiu criar uma sistema verdadeiramente distribuído e permitir interações e troca de valor à escala global entre pessoas que não se conhecem e sem ser necessário uma autoridade central a resolver disputas.
De facto, para o propósito de dinheiro digital, basta alcançar consenso distribuído no que toca à ordem temporal das transações, e nada mais. Esta ordenação é o que previne o caos num sistema monetário digital. Se tivermos em consideração o mundo físico, as restrições impostas pelas suas leis previne de forma inequívoca o problema de double-spend, pois a mesma moeda não pode existir em dois lugares ao mesmo tempo. Isto garante que para transacionar não é necessário confiar em terceiros e que a transação fica marcada no tempo e no espaço.
No entanto, para usar dinheiro no mundo digital precisamos de confiar em registos, porque não é possível utilizar objetos físicos. Um registo apenas funciona se for possível concordar na ordem definitiva das transações de forma a prevenir o problema de double-spend. E para estabelecer essa ordem são necessários timestamps.
Deste modo, torna-se claro que o problema fundamental que Satoshi Nakamoto teve que resolver foi criar uma sistema descentralizado de timestamping. Portanto, a ideia de que a Bitcoin é um relógio está à vista de todos. A verdadeira inovação de Satoshi foi a criação de uma fonte de tempo interna que opera de forma independentemente, e sem estar sujeita às vulnerabilidades de relógios externos ou autoridades centralizadas.
De facto, o sistema de Proof-of-Work e o ajuste de dificuldade da mineração a cada 2016 blocos foram desenhados para manter o tempo de descoberta de um novo bloco a cada 10 minutos, independentemente do poder computacional total da rede ou dos avanços das tecnologias de mineração. O objetivo não é manter o gasto de energia constante, mas sim manter o tempo de criação de novos blocos constante. Isso estabiliza a taxa a que novas bitcoins são criadas e transações são confirmadas, o que fornece previsibilidade ao que seria um ambiente caótico.
Este conceito está também relacionado com a ideia de escassez e de que um ativo verdadeiramente escasso tem que ter um custo não só em termos de energia para o produzir, mas também em termos de tempo. O tempo é finito e não é possível criar mais. Deste modo, a natureza finita do tempo contribui para a escassez absoluta da Bitcoin.
Sem o ajuste de dificuldade, o tempo necessário para encontrar um bloco iria diminuir à medida que mais miners se juntassem à rede ou a tecnologia de mineração melhorasse. Se a descoberta de novos blocos se tornasse muito rápida seria impossível ordenar as transações de forma fidedigna e, assim, prevenir o problema de double-spending. Por outro lado, com poder computacional suficiente seria possível praticamente minerar as bitcoins todas de uma vez sem respeitar a calendarização de emissão de novos tokens, que foi instrumental na distribuição de bitcoins ao longo do tempo.
Ao invés disso, o sistema de Proof-of-Work associado ao ajuste de dificuldade criam um ritmo constante de criação de novos blocos e uma realidade temporal alternativa, que mantém a sincronização da rede e a sua fiabilidade. Ao ajustar a dificuldade a cada 2016 blocos, a rede bitcoin assegura que o tempo médio de descoberta de um novo bloco é, em média, 10 minutos.
Esta noção temporal também afeta a forma como as transações são geridas na rede. As transações na mempool são consideradas atemporais até serem incluídas e validadas num bloco. A inclusão de uma transação num bloco atribui-lhe uma data e hora específica com base na posição desse bloco na blockchain. Isso simplifica o processo de determinação da sequência de eventos sem ter que deduzir a data e hora da transação com base numa multitude de relógios que vários participantes na rede ao redor do mundo poderão usar como referência. Ao redefinir o conceito de tempo dentro da rede, a rede é capaz de alcançar consenso da quanto à sequência das transações.
O ajuste de dificuldade é o condutor da orquestra da Bitcoin, que faz com que os batimentos do metrónomo interno da Bitcoin se mantenham relativamente constantes. Na verdade, a contribuição mais original e significativa de Satoshi Nakamoto foi o ajuste de dificuldade. Esse era o ingrediente secreto que acabou por cristalizar décadas de investigação e desenvolvimento na disciplina de Ciência de Computadores.
Em última instância, a natureza temporal de produção de novos blocos, em conjunto com a verificação de blocos por parte de cada node, significa que a Bitcoin efetivamente funciona como um servidor distribuído de timestamps. Cada bloco representa um consenso de transações já verificadas e com as quais toda a rede concorda. Isto não só garante a segurança do sistema e da rede, mas também redefine a forma como pensamos no concito de tempo dentro da rede.