Bitcoin e o Direito à Propriedade em Portugal: Uma Análise Legal e Conceptual

Bitcoin e o Direito à Propriedade em Portugal: Uma Análise Legal e Conceptual

01/10/25Por Tomás MamedeTempo de leitura: 10 minutos
Artigo escrito em colaboração com Nuno Lima da Luz

A Bitcoin veio desafiar não apenas a forma como o dinheiro funciona, mas também as próprias fundações da lei e do direito à propriedade. A sua natureza descentralizada associada à sua base criptográfica, faz com que a Bitcoin não se enquadre propriamente em nenhuma das categorias de posse e propriedade. A lei portuguesa já se começou a adaptar a esta nova realidade. No entanto, de forma a ser possível compreender como é que a Bitcoin se relaciona com o direito à propriedade em Portugal é necessário juntar o contexto da lei da propriedade portuguesa com a framework legal que existe na prática.


Categorias Tradicionais de Propriedade

Na vasta maioria das jurisdições, incluindo Portugal, a propriedade pessoal encontra-se dividida em duas categorias distintas. A primeira é “bens corpóreos”, que diz respeito a objetos tangíveis como uma cadeira ou uma moeda, que podem ser seguradas e tocadas fisicamente. A segunda categoria diz respeito a “direitos obrigacionais”, ou seja, direitos não tangíveis, como ações ou dívidas, que requerem ação legal para se fazerem cumprir. A Bitcoin não se enquadra em nenhuma destas categorias. Não é um bem tangível, pois a Bitcoin não é um bem corpóreo, não se encontra num local específico e não pode ser possuída num sentido físico. Para além disso, ao contrário de ações ou dívidas, possuir Bitcoin não depende do sistema legal para que a sua posse seja assegurada.

Isto tem feito com que vários juristas e legisladores por todo o mundo defendam a criação de uma terceira e nova categoria de propriedade privada, de forma a acomodar ativos criptográficos. Algo cairia nesta nova categoria se fosse composto por dados representados eletronicamente, se existisse de forma independente de pessoas e do sistema legal e jurídico e se fosse um bem rival, o que significa que a posse ou uso por parte de uma pessoa impedisse o uso ou posse por parte de outra pessoa, em simultâneo. A Bitcoin claramente satisfaz estas condições, o que reforça a necessidade de ser desenvolvida uma nova classificação de propriedade privada que reflita essas características únicas.


Titularidade vs. Controlo nos Cripto-Ativos

Para além disso, existe dificuldade em distinguir titularidade de controlo. Com bens físicos, posse é muitas vezes um forte indicador de titularidade. No entanto, no domínio dos cripto-ativos, o controlo é exercido através de chaves privadas criptográficas. Quem quer que detenha a chave privada é capaz de afastar todas as outras pessoas daquelas unidades de bitcoin, gastá-las através da sua transferência para outra pessoa ou entidade e identificar-se como a pessoa que é capaz de exercer esses poderes através de uma assinatura digital criptográfica. Este controlo é parecido com posse, mas não é idêntico a titularidade e existem casos limite que expõe esta diferença.

Por exemplo, quando existem duas pessoas que têm controlo sob a chave privada criptográfica ou conhecem a seed phrase a partir da qual pode ser gerada, ambas têm a capacidade de gastar aquelas unidades de Bitcoin. Nesta situação, controlo não pode ser o único fator a determinar titularidade, e a lei deve ser capaz de intervir de forma a resolver essas disputas, tal como tem feito ao longo dos séculos em casos de propriedade partilhada.

É importante referir que a Bitcoin, por si só, não oferece direito à propriedade. A criptografia sob a qual assenta apenas assegura que quem detém a chave privada tem a capacidade técnica de mover o ativo. O direito à propriedade apenas surge quando o Estado reconhece controlo como titularidade. Sem esse reconhecimento, Bitcoiners podem ver-se em situações difíceis uma vez que as disputas não podem ser resolvidas de forma definitiva. No entanto, com este reconhecimento por parte do Estado, o sistema ganha maior clareza e torna-se mais justo.


A Dimensão Monetária da Bitcoin

O lado monetário da Bitcoin também adiciona outra camada de complexidade. A unidade monetária encontra-se no centro de qualquer sistema monetário, representando poder de compra que inevitavelmente flutua com a inflação ou deflação da moeda. Na lei portuguesa, as obrigações monetárias são definidas como obrigações de fornecer valor quantificado numa determinada unidade monetária independentemente da forma do valor. Assim, a Bitcoin pode ter o mesmo papel estrutural que hoje é assumido pelo Euro.

Uma dívida denominada em Bitcoin não é diferente de uma dívida denominada em Euros. A Bitcoin pode servir como unidade de medida para quantificar obrigações monetárias e como um meio de pagamento para exonerar uma dívida. Apesar da sua volatilidade, que acaba por reduzir a confiança por parte de alguns utilizadores, a Bitcoin pode funcionar como dinheiro tal como qualquer moeda fiduciária. Cada vez mais existe reconhecimento prático e legal que suporta a visão de que obrigações monetárias em Bitcoin são obrigações monetárias verdadeiras e não contratos meramente digitais e especulativos.


Em Portugal, a lei já acomoda esta realidade. Cripto-ativos são legalmente reconhecidos como representações digitais de valor ou direitos que podem ser armazenados e transferidos eletronicamente. Tanto pessoas individuais como pessoas colectivas são livres para comprar, vender, transferir e deter Bitcoin ou outros ativos digitais. Controlo da chave privada é visto como um indicador de titularidade, dado que, efetivamente, permite exercer a posse sobre um determinado ativo, transferindo-o para uma outra carteira. Ativos digitais também podem ser apreendidos por ordem do tribunal, tal como qualquer outro ativo financeiro.

Para além disso, contratos denominados em Bitcoin também são legalmente possíveis em Portugal. Já foram executadas transações de propriedade utilizando pagamento por criptomoedas. Quando uma propriedade é comprada em Bitcoin diretamente, sem recorrer à conversão dos fundos em euros, a lei trata essa transação como se fosse uma permuta ao invés de ser considerada uma venda convencional em dinheiro. Para assegurar conformidade com as regulações de branqueamento de capitais, os Notários já procedem à identificação das partes interessadas na compra e venda, registo de detenção e transmissão dos cripto-ativos e comparações de valorização em grandes transações. Em simultâneo, a lei portuguesa preserva certos limites; por exemplo, obrigações monetárias como dívidas públicas e impostos não podem ser pagas em Bitcoin a não ser que ambas as partes concordem, na medida em que os cripto-ativos não são reconhecidos enquanto moeda fiduciária.


O Princípio da Auto-Custódia

Por detrás de tudo o que foi descrito ao longo dos últimos parágrafos encontra-se o princípio de self-custody ou auto-custódia. Uma das grandes revoluções permitidas pela Bitcoin é o facto de indivíduos passarem a ser capazes de custodiar os seus ativos diretamente, sem terem que contar com outras entidades, instituições ou intermediários para garantirem a custódia, eliminando assim o risco da contraparte. Assim, a lei deve continuar a adaptar-se a esta realidade, reconhecendo a importância deste controlo, garantindo-o, ao mesmo tempo que desenvolve um mecanismo para resolver disputas quando o controlo sobre o ativo é partilhado ou contestado.

A Bitcoin veio revelar as fragilidades das categorias de propriedade tradicionais, que existe de forma independente do sistema legal. Portugal já deu passos importantes no reconhecimento da Bitcoin e outros cripto-ativos com ativos legítimos, permitindo pagamentos contratuais e permutas com outros ativos, ao mesmo tempo que é também possui mecanismos legais para apreender cripto-ativos.


Desafios e Oportunidades Futuras

Ainda assim, continuam a existir desafios. Pagamentos que devem ser efetuados por via de moeda de curso legal saem fora do âmbito de atuação da Bitcoin, carecendo de aceitação de ambas as partes para que as obrigações tenham carácter liberatório, e ainda é necessário desenvolver um mecanismo legal que seja capaz de lidar com partilha ou roubo de chaves privadas criptográficas.

No entanto, à medida que a adoção de Bitcoin continua a ganhar tração globalmente, Portugal tem uma oportunidade de se manter na liderança e mostrar clareza nestas matérias. Ao reconhecer a Bitcoin como propriedade e obrigações denominadas em Bitcoin como obrigações monetárias, a lei pode garantir justiça, previsibilidade e estabilidade para indivíduos, empresas e instituições que navegam no âmbito da propriedade digital.